
A relação entre inovação com inteligência artificial e proteção da propriedade intelectual é um debate complexo que ainda não tem respostas prontas. No Digital Privacy Summit 2025 o tema foi discutido em diferentes perspectivas: direito, compliance, tecnologia e até concorrência.
Quando analisamos as crescentes tensões no uso de obras humanas como insumo para treinar algoritmos, quem será o autor das criações daqui para frente e como os direitos autorais serão definidos são pontos que ainda precisam de discussão e regulação. E neste ponto entram questões de transparência na informação e propriedade intelectual na criação de conteúdos com IA.
Juliana Oliveira Domingues, professora da USP e assessora especial do MJSP, chamou atenção para um princípio que antecede a própria discussão sobre IA: a qualidade da informação prevista no Código de Defesa do Consumidor. O artigo 6º do CDC já garante ao cidadão o direito à transparência, algo que precisa ser resgatado no debate sobre algoritmos.
“A ideia não é proteger um direito e prejudicar esse processo [IA], que é um processo de inovação necessário até para o nosso desenvolvimento econômico e social”, pontuou Juliana. O problema não é a inovação em si, mas o desequilíbrio que surge quando faltam regras claras sobre como usar dados e obras em ambientes de IA.
Os direitos autorais
O advogado Aislan Basilio, coordenador jurídico multiplataforma da RecordTV, trouxe a visão de quem vive na prática o impacto sobre empresas de mídia e produtores de conteúdo. Para ele, o uso de obras sem autorização para treinar modelos de IA acende três alertas. O primeiro é a perda de receita, pois conteúdos que antes eram monetizados por paywalls ou publicidade passam a ser insumos gratuitos para sistemas algorítmicos. Na sequência o risco de confiabilidade, se as bases de dados não forem fidedignas, o resultado pode ser desinformação em escala.
E por fim o desincentivo à criação humana, uma vez que sem uma remuneração justa, jornalistas, roteiristas e artistas podem perder estímulo para produzir. Basilio alerta que isso traz um debate mais profundo pois “talvez a gente tenha que pensar que o resultado da sociedade poderia ter um empobrecimento, uma questão de um aspecto cultural. A grande pergunta que a gente tem que fazer não é se a IA vai criar e sim o que a IA vai criar”.
Processos como o movido pelo New York Times contra a OpenAI, nos EUA, e a ação da Folha de S.Paulo, no Brasil, e até uma decisão em Santa Catarina que reconheceu a proteção de uma música derivada de IA generativa, mostram que o conflito já é realidade. Basilio resgatou um caso histórico: a disputa Sony vs Universal, de 1984, quando a Suprema Corte dos EUA decidiu que gravadores de vídeo poderiam ser usados legalmente, mesmo diante da resistência da indústria cinematográfica. O precedente, baseado no conceito de fair use, mostra que a tecnologia em si não é o problema, desde que exista a adaptação das leis à nova realidade.
Regular sem travar
Sob o prisma da tecnologia, Affonso Nina, Presidente Executivo da Brasscom, alertou para o risco de radicalização no debate legislativo. Segundo ele, o Projeto de Lei 2338, em discussão no Congresso, precisa buscar convergência e não aprofundar visões opostas entre criadores de conteúdo e empresas de tecnologia.
Para o executivo, sem uma regulação mesmo que mínima, em um contexto global, o Brasil fica fora do “palco” tecnológico internacional. “A gente quer que esse debate e aprovação de uma regulação aconteça logo e, obviamente, com respeito aos vários pontos dentro da legislação e direitos de propriedade intelectual” apontou. É necessário que se tenha uma visão de longo prazo, não se trata apenas de IA, mas de preparar o país para tecnologias futuras, como a computação quântica.
Affonso lembrou que 60% da nuvem brasileira roda fora do país e defendeu investimentos urgentes em infraestrutura digital e formação de talentos, sob risco de o Brasil perder espaço em um jogo que já é geopolítico. “Temos que trazer isso para cá, que é autonomia de processamento de dados aqui e temos uma oportunidade de uma janela de colocar o Brasil nesse jogo ao nível global, exportando serviços de processamento de dados” destacou.
Governança corporativa
O uso de Inteligência Artificial é um movimento sem volta e Vanessa Butalla, Chief Legal, Compliance & Risk Officer da 2TM, diz que é comparável com a revolução industrial ou até mesmo à chegada da internet. Contudo com um diferencial importante: a velocidade inédita da transformação.
E para acompanhar a velocidade das necessidades de adaptação, os programas de compliance precisam se apoiar em definição de políticas claras para estabelecer quais processos serão impactados, quais dados podem ser compartilhados e quais ferramentas serão autorizadas para uso de IA. Para Vanessa, as empresas precisam investir em treinamento contínuo, capacitar colaboradores, gestores e fornecedores sobre os limites e responsabilidades no uso da inteligência artificial: “as pessoas precisam entender qual é a importância de se cuidar dos dados que são aportados, do resultado que vem das ferramentas e o mais importante, como a empresa na qual elas estão inseridas pretende lidar com isso, quais são os limites aceitáveis”.
Vanessa também destacou um ponto sensível: a terceirização de serviços. Contratos e termos de serviço precisam ser acompanhados de perto, com revisões constantes, em um modelo semelhante ao da LGPD, incorporando aprendizados sobre opt-in, opt-out e usos legítimos.
Concentração de mercado
Juliana, que já fez parte do CADE, apontou que o órgão já acompanha operações de concentração envolvendo tecnologia e está alinhado às recomendações da OCDE. Nos últimos três anos, foram analisados cerca de 90 casos de fusões e aquisições. A preocupação, explicou, é que a IA não acentue desigualdades ao concentrar poder nas mãos de poucas big techs.
Mas o órgão regulador já possui mecanismos para intervir em condutas abusivas, aplicando sanções pecuniárias e não pecuniárias quando necessário. “Ele quer a promoção da competitividade. Ele não quer eliminar concorrentes. Ao mesmo tempo, ele não vai fazer intervenções na livre iniciativa que sejam desnecessárias”, Juliana expôs.
Sem comentários registrados