
O avanço das neurotecnologias recoloca no centro do debate uma pauta que ultrapassa os limites da ciência: os neurodireitos. A discussão, que já entrou na Constituição do Chile e em projetos legislativos no México e no Brasil, acende o alerta sobre como proteger a integridade do pensamento em uma era em que máquinas começam a interagir diretamente com o cérebro. No 2º Seminário Internacional de Inteligência Artificial em Educação e Cultura, especialistas apontaram que a fronteira entre inovação e risco precisa ser tratada como prioridade de políticas públicas.
O conceito de neurodireitos surgiu com força a partir de 2017, quando pesquisadores como Marcello Ienca e Rafael Yuste propuseram um conjunto de garantias ligadas às tecnologias capazes de ler ou estimular atividades cerebrais. Entre elas, estão o direito à privacidade dos dados neurais, a continuidade psicológica (garantia de que a tecnologia não alterará a forma de pensar) e a igualdade de acesso a esses recursos.
O neurocientista e futurista Álvaro Machado destacou que tais dispositivos podem abrir oportunidades na saúde, mas também carregam o risco de criar novas desigualdades. São interfaces que captam ondas cerebrais ou até se conectam em nível neuronal. Se o acesso for restrito, teremos uma sociedade dividida entre quem pode aprimorar suas capacidades e quem fica de fora.
Na América Latina, o debate começa a ganhar força. O Chile incluiu os neurodireitos em sua Constituição em 2021, o México apresentou um projeto em 2023 e, no Brasil, uma proposta de emenda constitucional aguarda relatoria no Senado. Para especialistas, a definição legal é um passo crucial para evitar que as neurotecnologias avancem sem salvaguardas éticas.
Imaginação, criação e a “nota 7” da IA
O debate, no entanto, é plural e complexo. Um exemplo é o ponto trazido pela escritora e dramaturga Ana Maria Gonçalves, para quem é preciso discutir o direito à fabulação. Para ela, a capacidade de imaginar e contar histórias é um dos pilares da evolução humana e precisa ser defendida em tempos em que algoritmos já produzem narrativas. “Uma das coisas que a gente tem que defender muito é a nossa capacidade de continuar contando histórias. De humano para humano para as gerações seguintes. Eu acho que isso deve ser inegociável”, relatou.
Assine nossa newsletter clicando aqui!
Segundo Ana Maria, a literatura molda o pensamento coletivo e não pode ser reduzida a uma média algorítmica. Há o risco de perder o ritmo singular de cada autor e de moldar leitores apenas para padrões repetitivos. “A experiência vivida é o que trouxe a gente até aqui, e esse processo, eu acho que a gente não pode abrir mão”, deixou claro a escritora. A preocupação se soma a dados que indicam o uso crescente de IA em revisões de livros e resenhas online, muitas vezes sem transparência.
Machado, em contraponto, frisou que a inteligência artificial opera dentro de uma lógica da “super nota 7”: não entrega o excepcional, mas oferece consistência. Ele comparou a produção algorítmica a obras comerciais feitas para emocionar de forma previsível, como filmes que induzem lágrimas em pontos calculados. “O grande autor traz, não só uma experiência de vida, mas a experiência de escrita. E essa é a arte de quem vive o mundo real”, disse.
O que a IA não pode e não deve fazer
Entre alertas e contrapontos, ficou clara a necessidade de diferenciar limites técnicos de limites éticos. Machado lembrou que, apesar do discurso futurista, ainda não existe tecnologia capaz de decodificar a “linguagem do pensamento”. Em sua explicação ele diz que o que temos são correlações entre atividade neural e experiências, mas não há máquina que traduza símbolos mentais, classificando como ideológica a ideia de uma “internet do pensamento” prometida por empresas como a Neuralink.
Para além da ciência, os especialistas reforçaram que o que a IA não deve fazer é transgredir princípios básicos dos direitos humanos. Cursos de pensamento crítico, cuja procura cresceu 194% na América Latina segundo a plataforma Coursera, são um reflexo desse esforço de recuperar a autonomia intelectual em meio ao excesso de respostas prontas.
Entre progresso e desigualdade
A discussão sobre neurodireitos também toca na economia. Para Machado, mais do que substituir empregos, a inteligência artificial tende a ampliar desigualdades ao reduzir custos de trabalho e pressionar salários. O risco não seria o desemprego em massa, mas uma possível concentração de ganhos em poucas empresas que operam tokens de IA, tornando-se sócias invisíveis da economia global.
Esse cenário reforça o caráter político da discussão. Ana Maria enfatizou que a literatura e as artes seguem como espaços essenciais para imaginar futuros possíveis fora das lógicas de opressão. Citando Millôr Fernandes, ela afirmou: “A gente tem um grande passado pela frente. Então vamos entender o que do passado a gente pode trazer para moldar esse futuro que a gente quer”.
A conversa deixou evidente que os neurodireitos não são apenas um debate acadêmico, mas uma pauta de cidadania. Entre promessas de chips cerebrais e contratos editoriais que já regulam o uso de IA, a questão central é como garantir que a tecnologia sirva à humanidade sem sequestrar sua capacidade mais vital: a de pensar e imaginar livremente.
Sem comentários registrados