Para quem não navega muito pelo mundo da tecnologia o título desse texto pode parecer algo estranho. Na maioria das vezes parece que estamos totalmente fora do jogo de IA por todas as barreiras que enfrentamos, de talentos a recursos, passando pela complexidade tributária. Mas, sim, estamos falando de um modelo de inteligência artificial desenvolvido e treinado no Brasil. E não apenas isso: trata-se de um modelo criado em português, com as nuances culturais do País, que segue um forte protocolo de sustentabilidade e é escalável. Essa IA também trata de um tema cada vez mais caro: soberania.

“Quando anunciamos, perguntaram se usávamos algum prompt do ChatGPT, afirmavam que era impossível fazer modelo de grande porte com menos de bilhão (de dólares de orçamento), mas nós fizemos”, comenta Nelson Leoni, CEO e sócio da WideLabs, startup responsável pelo desenvolvimento da Amazonia IA. O modelo surpreendeu até a ministra de ciência e tecnologia, Luciana Santos, ao interagir com a plataforma. Durante um evento, ela pediu para a IA uma receita de rapadura (a ministra é nascida no Recife (PE)) e, como afirmou o executivo, a IA não apenas respondeu, como incluiu uma sugestão adicional.
A Amazonia IA não nasceu da noite para o dia e tampouco foi o primeiro projeto da WideLabs com IA aplicada. O embrião para esse modelo brasileiro é uma plataforma, também baseada em IA, pensada para tratar pessoas com Doença de Alzheimer. Chamado de bAIgrapher, o large language model (LLM) grava, interpreta e organiza as informações de pacientes com a doença. Com isso, autobiografias são criadas e, posteriormente, utilizadas para ativar a memória dessas pessoas.
“É uma opção de terapia de reminiscência (Alzheimer), usa memórias fortes para retardar perdas e até recuperar algumas memórias. O LLM compreende o contexto das histórias. A gente sintetiza a voz do paciente e isso passa a ser remédio de lembrança”, explica Leoni, ao lembrar que, na ocasião, não havia um LLM em português, por isso, o desenvolvimento inicial foi todo em inglês. A solução ganhou prêmio de inovação em Cannes como melhor projeto com IA, o que gerou grande repercussão. Atualmente, o LLM está em estudo clínico na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), além de já contar com aprovação para uso privado.
Respeito aos dados
Essa plataforma que pode ajudar a revolucionar o tratamento de Alzheimer acabou por ser o pontapé inicial para o desenvolvimento do LLM Amazonia IA. Após a repercussão com o bIAgrapher, eles foram procurados pela Nvidia, quando comentaram a ambição de criar um modelo robusto de IA em português e aqui no Brasil. A fabricante envolveu a Oracle, que já era parceira Nvidia em processamento de IA. Com esse apoio de infraestrutura, o time da Widelabs avançou e conseguiu colocar em funcionamento o modelo em português, com contexto nacional, nuances culturais e que congrega a riqueza de fauna e flora do Brasil. Tudo isso de forma sustentável. O modelo está hospedado em data centers que conta com diversas certificações de sustentabilidade e roda com energia 100% renovável.
“O bIAgrafer nos deu três grandes tecnologias bem elaboradas, a primeira é a garantia de que com conteúdo relevante e preciso entregar por meio de prompt, não pode alucinar. Minha IA não alucina! Precisei resolver esse problema, poderia destruir a história do paciente. Segundo ponto é soberania, que tem aspecto de regulação, proteção de dados, que é uma discussão clara. E quando posso replicar essa soberania para outros países, garantir que seus dados e informações não serão usadas por mim para nada, vou manter soberania com a instituição, é muito relevante. O terceiro é o que chamo de bundle, desenvolvemos várias tecnologias, entre elas a de sintetização e transcrição de voz, e o que fazemos é impecável.”
O treinamento da linguagem envolveu mineração de dados abertos, mas, também, compra de dados de fontes variadas. Leoni conta que muitas pessoas ficavam surpresas ao serem procuradas para compra de informações, já que existe um debate muito grande em torno disso e muita gente acaba por usar sem autorização. “Usamos técnica diferente e a principal não tem a ver com pré-treino ou fine-tuning. A nossa principal inovação foi na construção de datasets. Provamos na prática, com a técnica utilizada, que volume é importante, mas qualidade é mais importante que volume, por isso, hoje sou o único a ofertar replicação de soberania”.
Se houve questionamento sobre a criação de um modelo sem orçamentos bilionários na apresentação do Amazonia IA e até mais recentemente, a história veio por terra nos últimos dias com o lançamento do modelo chinês DeepSeek, o que, de certa forma, como avalia Leoni, ajuda a startup brasileira. Além de ratificar a tese do investimento, na visão do executivo, a iniciativa mostra que os países podem criar suas IAs e evitar a dependência das gigantes de tecnologia e, obviamente, garantir sua soberania.
Olhando adiante, Leoni entende que haverá uma presença cada vez maior da inteligência artificial nas rotinas das pessoas. “Isso significa que a maioria das pessoas vão aprender sobre nossa cultura e nosso país por meio das IAs. O que eu não queria? Que a história do Brasil fosse contada por alguém que fez um fine-tuning e contou com outro viés. Queremos defender esse legado de cultura, democratizar o acesso. Ele (o Amazonia IA) entrega senso de pertencimento, que foi o que uma pessoa me falou (como feedback). Quero que soluções gerem impacto para estudante de escola pública”.
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