Por Christian Souza*

No recente World AI Summit, em Amsterdã, um dos fóruns globais mais relevantes sobre Inteligência Artificial, um ponto em comum uniu líderes tecnológicos e corporações: a IA tornou-se um tema estratégico de soberania. Em um mundo onde eletricidade é convertida em inteligência, a capacidade de desenvolver, controlar e escalar tecnologias de IA passou a definir poder econômico e autonomia nacional. O valor de mercado da Nvidia, que ultrapassa os 4 trilhões de dólares, equiparando-se ao PIB da Alemanha, é um símbolo claro dessa nova economia da inteligência.

Mas afinal, o que significa IA Soberana? O conceito refere-se à capacidade de uma nação ou organização de desenvolver e operar suas próprias tecnologias de IA, garantindo independência em relação a terceiros no uso de dados, modelos e infraestrutura crítica. Em outras palavras, trata-se de assegurar que o coração das operações digitais, a inteligência, não dependa exclusivamente de plataformas estrangeiras ou provedores de tecnologia que podem, a qualquer momento, alterar regras de acesso, custos ou disponibilidade.

Essa busca por soberania é reflexo direto das tensões geopolíticas do século XXI. Europa, Estados Unidos e China travam uma corrida silenciosa para garantir o domínio da IA. A Europa, ciente de sua defasagem em relação aos Estados Unidos e à China, aposta em uma abordagem regulatória e ética como diferencial competitivo. O AI Continent Action Plan, estratégia de €200 bilhões, busca criar um ecossistema pan-europeu que una capacidade computacional, dados, talentos e segurança. Com iniciativas como o AI Act que define padrões globais de governança de IA, o bloco tenta equilibrar inovação com valores democráticos, posicionando-se como uma “terceira via” entre o modelo liberal americano e o controle estatal chinês.

Os Estados Unidos, por sua vez, perseguem uma estratégia mais pragmática: alcançar a dominância global em IA por meio da força do setor privado. Empresas como Nvidia, OpenAI e Microsoft ditam o ritmo da inovação, enquanto o governo utiliza o controle de exportações de chips avançados como ferramenta geopolítica. O país exporta não apenas tecnologia, mas uma stack completa de IA, do hardware às APIs, o que cria dependências profundas mesmo entre nações aliadas. O paradoxo americano é evidente: quanto mais os países adotam a infraestrutura dos EUA, mais perdem controle sobre seus próprios ecossistemas digitais.

A China segue em direção oposta. Seu plano é alcançar a autossuficiência total até 2030, construindo desde a fabricação de chips até os modelos de IA de uso final. Com investimentos bilionários e rígido controle estatal, Pequim persegue a soberania tecnológica como instrumento de poder político. No entanto, ainda há uma lacuna considerável: entre centenas de modelos avançados de IA no mundo, quase todos são treinados em GPUs norte-americanas. Mesmo a potência asiática mais ambiciosa enfrenta o desafio de depender de um ecossistema tecnológico controlado pelo Ocidente.

O grande dilema, portanto, é que a busca por independência pode gerar novas formas de dependência. A chamada “soberania total” pode ser uma ilusão cara e ineficiente. Mesmo países e empresas tecnologicamente maduros continuam dependentes de poucos fornecedores globais de hardware, nuvem e algoritmos. O caminho mais inteligente parece ser o da soberania seletiva, escolher estrategicamente o que controlar e o que terceirizar. Dados sensíveis e modelos proprietários exigem domínio interno, enquanto processos de inferência e escalabilidade podem, com segurança, ser operados em nuvens públicas.

Para o mundo corporativo, essa discussão vai muito além da infraestrutura. A verdadeira autonomia não está apenas em possuir tecnologia, mas em compreender o que não pode ser terceirizado. Chamo isso de autonomia inteligente, a capacidade de definir, dentro de cada empresa, quais ativos são críticos, quais são estratégicos e quais são operacionais. Essa clareza orienta investimentos, reduz riscos e constrói vantagem competitiva sustentável.

A soberania de IA, portanto, não é um destino, mas um exercício contínuo de estratégia e discernimento. As nações buscam equilibrar regulação, poder e independência. As empresas, por sua vez, precisam aprender a equilibrar controle e eficiência. O futuro pertencerá a quem dominar essa arte: controlar o que é crítico, delegar o que é estratégico e liberar o que é operacional. No fim, soberania em IA não é sobre independência total, mas sobre sabedoria. E quem souber escolher suas batalhas com inteligência, liderará o futuro digital.

*Christian Souza, executivo de tecnologia com 24 anos de experiência, é Head of Solutions Architecture na Zup. Formado em Ciência da Computação com MBA em Gestão Estratégica de TI pela FGV, ele tem especializações em Machine Learning, Data Science e Big Data pelo MIT e AI Strategies for Business pela Kellogg Executive Education.

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